aulo era preto e assim se intitulava.
Doutor Paulo Preto a seu dispor, foi como se apresentou sorridente para mim no centro cirúrgico do Hospital Sírio Libanês, há mais de vinte anos.
Auxiliar de enfermagem de carreira, havia atribuído a si mesmo o nome título como corruptela irreverente ao doutor Paulo Branco , professor de cirurgia respeitado por todos seus ex-alunos no hospital.
O riso fácil, o ar de moleque provocador, o corinthianismo fingidamente fanático, a informalidade indistinta no trato com superiores hierárquicos ou subalternos e o bom humor indestrutível ao cuidar dos pacientes, fizeram dele o personagem mais popular do hospital, presença obrigatória nos eventos festivos; difícil passar uma semana sem que saísse para almoçar ou fosse ao estádio com algum médico.
Fazia uso descarado dessa proximidade para ajudar ,parentes, amigos e até estranhos a conseguir internações, cirurgias e consultas.
Uma vez encontrei-o na saída do plantão, com calça de vinco, camisa florida e sapato de duas cores. '-Sou um negro estiloso.', justificou, em resposta ao meu elogia. Disse ter ouvido falar do meu trabalho na Casa de Detenção e que seu sonho era voltar à cadeia que ele conhecera na infância por causa de um parente preso.
No presídio, passou a tarde num banquinho ao meu lado, atento às consultas, sempronunciar uma palavra. Na volta, descemos [na estação do Metrô] em Sta. Cecília mortos de calor e entramos num bar. Primeiro gole, tomou dois terços do chope, suspirou e sorriu com gosto: 'Suave, doutor. '- Agora estou completamente feliz!'.
No dia seguinte, ele se ofereceu para ajudar no atendimento aos presos. Expliquei que era uma tarefa árdua pela qual ele nada receberia; que eu, era médico e podia me dar o luxo de trabalhar um dia por semana sem remuneração; mas não consegui demovê-lo. Dos treze anos que trabalhei no Carandiru, oito foram em companhia de Paulo Preto.
Ao terminar o exame físico dos doentes, eu ditava a prescrição, que ele anotava em letra clara para explicá-la ao destinatário com todos os detalhes , enquanto entrava o caso seguinte. Conseguimos tamanha eficiência que chegávamos a atender sessenta e até setenta pacientes em oito horas. Eu, às veses, me impacientava com tanto movimento; ele, nunca.
Apesar da qualidade incomparável da pele negra e da ausência de um único cabelo branco subtraírem vinte anos de sua aparência, os presos o chamavam de Seu Paulo, com todo o respeito.
Com o tempo, adquiriu, no prsídio, popularidade comparável à do hospital. Numambiente em que os homens podem ser acusados de tudo, menos de ingênuos, sua falta de malícia ficou folclórica.
Numa segunda-feira, ao chegar na cadeia, nós nos deparamos com um aglomerado de carcereiros junto á sala da revista, parada obrigatória antes de entrar. perguntei a seu
Valdemar, funcionário antigo, a razão do alvoroço: 'Pegaram um colega com um quilo de cocoína.'
Paulo Preto não pestanejou: '-Entrando ou saindo?'
Seu Valdemar perdeu a paciência : '-Saindo, Paulo. Eles plantaram coca lá dentro, refinam e mandam para a rua!'
O comportamento reservado ao extremo no interior da cadeia contrastava com a extroversão que vinha á tona quando nos reuníamos para tomar cerveja com os funcionários, no final do expediente. Nessas ocasiões, disparava a falar, até alguém pedir: '- Socorro, o negão destravou. Por amor de Deus, doutor, segura o homem!'
No tom de quem repreende uma criança, eu dizia que era flata de educação monopolizar a conversa. Ele me ouvia, de fato. Uma cerveja mais tarde, no entanto, começava tudo de novo.
SEmana passada, recebi um telefonema às duas da manhã:'-Doutor, aqui é a irmã do Paulo Preto. Ele acabou de ter um ataque fulminante. Que tristeza: cinquenta anos!'
Que tristeza mesmo; tenho passado o tempo todo com a imagem dele no pensamento.
Contraditoriamente, quando converso com os amigos do hospital e da cadeia, só nos lembramos dos acontecimentos cômicos protagonizados por ele.
Na coluna de hoje, quero agradecer o privilégio de ter sido seu amigo
durante anos e prestar uma homenagem a Paulo Preto, em nome de todas as pessoas doentes que ele ajudou."
Fonte: coluna do Dr. Drauzio Varella, FOLHA DE S. PAULO, sábado, 20 de janeiro de 2007.
Publicado em 20/01/2007. Reproduzido em 20/04/2011. Atualizado em 20/04/2011.
Para referir: VARELLA, D. Paulo Preto. Folha de São Paulo, 20/01/2007 disponível na internet: http://www.marcosmaximino.psc.br. Acesso em dd/mm/aaaa.